A Triste Peta do Ano Novo
Eça de Queiroz
31 de dezembro de 1906 (à meia-noite).
Está a exalar o último alento o ano de 1906.
Daqui a horas terá entrado, no largo colapso da História, o ano que me aproximou de ti. Para mim constituiu isso nele uma boa recordação, e motivo para lhe perdoar de bom grado quanto de mau e de idiota ele semeou pela Terra.
Que, afinal, para mim é inteiramente indiferente que ele ou outros, no seu lento perpassar, deixem cair das dobras do velho manto do tempo a flor rubra do mal ou a cândida açucena do bem. No meu velho tonel de cínico tem igualmente aceitação o Sol que aquece, como a sombra que refresca.
Ambas as coisas são excelentes, conforme o momento em que as apetecemos. Não chegarei nunca a distinguir o bem do mal senão na problemática intenção de quem os pratica.
É inegável que o Sol não deixa de ser um bem no mundo, mas não deixa de ser uma refulgente verdade, que quem o agüente a pé firme, à torreira, por horas sucessivas, maldirá esse bem, para bendizer o frio dos brumosos dias de dezembro.
Tive na vida muitas e demoradas ocasiões de ver quanto é relativo todo fato subjetivo. Não há melhor laboratório de estudo que a nossa própria vida. Olhando para ela como para um poço escancarado, vamos encontrar-lhe exemplos da vida de toda a gente, diferenciando-se tão-somente na coloração ou na intensidade.
Fato que para um afetivo constitui dor sem limites, afogado em lágrimas e esmaltado de exclamações doloridas, como uma fatia de paio esmaltada de ervilhas verdes de conserveiro, para um fleumático equivale a ligeiro acidente, somente digno de reparo, porque veio quebrar a monotonia da sua vida, com um aspecto eventual e novo.
Ora, o fato é o mesmo; o modo de apreciá-lo é que é diverso.
Assim o bem e o mal, para cada pessoa a quem eles vêm, têm o aspecto com que cada qual os encara.
Habituei-me a pensar assim.
Talvez que por isso mesmo não conheça as grandes intensidades na dor ou na felicidade.
Organização temperada, uma espécie de Nice humana, entre o clima tórrido do entusiasmo e o glacial da indiferença – sem contrastes mas sem desequilíbrios.
Não desgrenhava a gaforina, nem avermelhava os olhos em manifestações convulsivas de dor brava, mas também não escancarava a boca, nem comprimia o ventre nas ruidosas convulsões de um riso epiléptico. Fiquei-me no meio termo; naquilo em que reside a virtude dos latinos.
Assim a serenidade raramente me abandonava ou abandona.
Neste belo estado de alma, em que chego a perguntar a mim próprio se o ilustre frei João Sem Cuidados da anedota entroncaria em algum dos rebentos da minha árvore genealógica, deves compreender, à maravilha, a indiferença com que, nesse mundo, me deitava à noite em uma fase convencional do tempo e me levantava em outra.
O dia de hoje será sensivelmente igual ao de amanhã, como o foi ao de ontem. Só se distinguem, não pelo que se passa neles, mas pelo que se passa no âmbito em que nós gravitamos.
Em todos os dias termina um ano, e em todos os dias começa um ano novo. Para que em nossa vida se operem modificações, para que saibamos apreciar os fatos, lutar, rir, amar, sofrer, não necessitamos nada do calendário gregoriano.
Não é pelo nascimento de Cristo, nem pelas referências da Hégira, que apreciaremos as fases evolutivas da idéia no nosso cérebro, nem do sentimento no nosso coração.
Podia deixar de haver a folhinha do Borda d’Água, que nem por isso deixava de haver homens que se quisessem mal; mulheres que se invejassem; usurários que esfolassem o próximo, e próximo que iludisse o seu semelhante; como não deixaria de chover, de fazer sol, de haver cogumelos, e de nascerem asnos e tolos, por esse vasto mundo de singularidades e de contrastes berrantes como o fato de uma cigana.
Compreendo, entretanto, muito bem, que em nossa vida derreada através do tempo se assinale com uma referência frisante em nossa memória o dia em que Deus nos deu um filho, que constituirá a preocupação dominante da existência; ou com o acerado cravejamento de um espinho em nosso coração aquele outro dia em que esse filho, quebrando confrangedoramente o sonho do nosso amor, se deixa aniquilar aí pela morte; mas para essas coisas e outras idênticas não se inventou o dia 31 de dezembro nem o dia 1º de janeiro.
Para rememorar com saudade o nosso primeiro amor, a nossa primeira esperança; ou para evocar, com dolorida mágoa, o nosso maior desgosto; a perda da nossa mais fagueira ilusão, a traição primeira da nossa mais bela amante ou do nosso mais dileto amigo, não cuidamos de fixar o dia a que estamos na semana, nem a que distância do final do ano.
Quando a data entra na referência, é como um sinal, um incidente; coisa mínima, como um pedaço de ferro que ergastule um diamante, ou pingo de sebo que manche um vestido cetinoso e branco de noiva.
Há pessoas que no uso e abuso das exterioridades de que a hipocrisia se mascara, se entretêm a moer aí alguém com boas-festas e apetecimentos de anos de ventura no primeiro dia do ano, e se esfalfam, durante todo esse ano, a penitenciarem-se do seu desejo, inventando tudo quanto seja possível para torturar e dilacerar a vida a esse alguém.
Para te desejar venturas não necessito de esperar que o calendário me diga, na sua mutação fútil e fria, o dia em que tas devo desejar. Desejo-tas quando te queira bem; e isto de querer bem não se dá com o metro, com o quilo, nem com a folhinha.
Não é coisa que se venda nem que se regulamente ou escriture.
Esperar dias para rir ou para chorar; esperar épocas para endossar afetos ou desejar felicidades, será muito metódico, muito comercial, mas é muito pífio e muito reles.
É possível que se abone com o hábito, como a ignorância pode abonar-se com a rotina; mas foi isso que eu procurei escavacar quando por aí andei e sentia os meus movimentos peados como um fogoso poldro na lezíria a que prendessem os pés para não saltar; e não estranhes que ainda daqui, onde essas velharias não têm o valor de um maravedi- manuelino, eu despeje a minha aljava em crivar de setas os ridículos e as pretensões idiotas da civilização humana.
31 de dezembro, 1º de janeiro!
Boas Festas!…
Ora os patetas!…
EÇA DE QUEIROZ
Fonte: Reformador – Janeiro, 1975 – (Transcrito do livro Eça de Queiroz, Póstumo , de Fernando de Lacerda, pgs. 51 a 54, 2ª ed. FEB.)