“Uma das assistidas pela ‘Caravana Auta de Souza’, uma moça tuberculosa, de vinte e dois anos, ficou gávida. Um dia eu soube que ela estava muito mal. Fui visitá-la, no casebre de taipa e palha. Quando lá cheguei o menino já havia nascido, há alguns dias, e estava sobre uma rede em cima da cama dela. A doente me disse:

– Irmão Divaldo, eu não posso morrer, porque não tenho com quem deixar o meu filho. No dia em que alguém puder tomar conta dele, morrerei em paz.
– Então, minha irmã – respondi-lhe -, morra em paz, já que eu vim aqui em nome de Auta de Souza, para tranqüilizá-la e dizer-lhe que tomaremos conta de seu filho.
– Olhe meu filho – pediu-me.
Olhei-o e o vi gordo, muito pretinho, todo caiado de talco…
– Quando me dão dinheiro – explicou a mãe – eu deixo de comprar comida para mim, para comprar leite e pó-de-arroz para passar nele sbobet88 .
– Pode ficar em paz, minha irmã, pois ele será meu filho.
– O senhor garante que fará meu filho feliz?
– Garanto.
– Então, fique com Deus!

Foram suas últimas palavras. Virou a cabeça para o lado, teve uma hemoptise e morreu. Chamei algumas pessoas para ajudarem. Veio uma das tias, levou o menino e, após tirarmos o cadáver ateamos fogo no barraco. Depois, fizemos o enterro. Quando o garoto estava com oito meses adoeceu, ficou muito mal. Preocupado, vendo-o quase morto, dobrei-me sobre ele, ao lado da cama, e comecei a aplicar-lhe passes, rogando, com muito fervor, a Jesus, que lhe restituísse a saúde.

Nisso, vi aproximar-se um ser venerando. A entidade era tão luminosa que, antes de se adentrar pelo quarto, vi como se alguém estivesse caminhando pelo corredor, carregando uma lanterna, com uma luz oscilante. Por debaixo da fresta da porta, a luz movimentava-se chamando-me a atenção, e vi, através da porta, um Espírito vestido à moda do século XVII, na Inglaterra, com a gola muito alta e eriçada, as mangas bufantes, terminadas em punhos de renda. Olhou para a criança e falou-me:

– Meu filho não deve voltar agora. Vou desdobrá-lo a fim de o vitalizar. Deite-se ao lado dele, pois vou fazer uma transfusão de forças, perispírito a perispírito.

Atendi-lhe a solicitação. Ele estava prostado pela pneumonia, febre alta e eu tinha receio de uma convulsão, pois estava com temperatura de quarenta graus. Ele se desdobrou e surgiu aos meus olhos como um pajem francês, de onze anos aproximadamente, os cabelos penteados à escovinha, na testa, a roupinha negra, a camisa branca rendada, o laço de fita negra , os sapatos “scarpin” com fivela de prata. Ele me pediu:

– Tio, não me deixe morrer. Eu tenho que viver para um dia poder unir-me à mamãe.
– Peçamos a Deus meu filho. Ela começou a orar. O corpinho da criança tremia, enquanto recebia a transfusão de forças, de prana, de energias ectoplásmicas. Após trinta minutos, aproximadamente, ela voltou para falar-me:

– Ouço uma voz que afirma que as nossas preces foram atendidas: ele ficará na Terra.
O jovenzinho espiritual, prestamente, retornou ao corpo e eu o vi encaixar-se para prosseguir na prova redentora. A criança agora transpirava abundantemente. Mudei-lhe a roupinha. Ela, zelosamente recomendou-me:
– Não lhe deixe a temperatura cair muito, a fim de evitar-lhe um colapso cardíaco. Começamos a conversar, já bem mais tranqüilos perguntei-lhe:
– Desde quando a senhora é mãe dele?

– Desde o século XI, tenho sido sua mãe, várias vezes, e ele sempre que mergulha na névoa do mundo, perde-se de mim. Esta reencarnação é-lhe decisiva, porque veio nessa condição para aprender a humildade, sem o carinho de mãe, recebendo os beijos e a ternura dos outros. Não o deixe fracassar desta vez Ele tem que servir a Jesus, custe o que custar. Meu filho tem que resgatar os crimes cometidos durante a Terceira Cruzada, de que participou…

– Mas, por que a senhora demorou tanto para aparecer?
– porque antes de vir vê-lo, visitei todos os que aqui nesta casa não têm mãe. Fui primeiro ver os filhos cujas mães, no Além, não os podem visitar e deixei o meu – porque todos são de Deus – por último; eu queria passar antes pelos que não receberam a visita da própria genitora. Quase cheguei tarde, mas, o meu dever é amar os estranhos para mais amar a meu filho.

Ela me falou com tanto amor e ternura que comecei a chorar, diante daquele corpinho frágil que necessitava prosseguir na vida física.
– O menino vai viver – afirmei-lhe – porque, se depender de nós, de mim, minha irmã, tudo faremos, nem que eu tenha que lhe dar o meu corpo, a minha vida. Ele viverá! Deus vai nos ajudar.

– Faça isto, Divaldo. Daqui a dez anos eu voltarei. Despediu-se de mim e desapareceu. No dia seguinte, Tagore escreveu para esse menino a página “Testamento do Rei”, que está no livro Filigranas de Luz.

Dez anos depois, no dia do aniversário dele, eu participava de sua festinha – nós comemoramos os aniversários do mês em uma mesma data e aquele era o dia do  aniversário dele – quando me lembrei de sua mãe espiritual e fiz uma prece. Ao final, ela apareceu-me. Apresentou-se-me com a mesma beleza espiritual e afirmou-me:

– Nas Leis do mundo espiritual, quando alguém comemora dez anos, adquire mérito para um pedido à Divindade. Quem é fiel e permanece no trabalho por um decênio já não é mais um entusiasta, tornando-se credor do prosseguimento na tarefa. Meu filho viverá. Tenho noticias que ele vai viver até ultrapassar a idade na qual ele maculou o nome de Cristo, pela conduta irresponsável.

– Com quantos anos ele se comprometeu?
– Com vinte e seis anos.

Esse Espírito esclareceu-me,  ainda, que se não houvesse muito amor em volta dele, os obsessores desencarnavam-no, porque ele era sugado, vampirizado pelas vitimas de antanho. A Terceira Cruzada deve ter sido há uns 800 anos e pregada por Guilherme, arcebispo de Tiro. Agora é que ele está resgatando. Indaguei-lhe o porquê  dessa demora em reabilitar o passado. Ela explicou-me:

– Ele voltou sempre na viciação clerical. Cristo, para ele, era só um móvel para atingir as metas. Era o interesse da igreijificação do poder. No século XIX ele veio com o “mal de Hansen”, que lhe foi o grande despertador e agora veio para outra prova.

– Mais tarde – prosseguiu ela – será encaminhado à mediunidade, especialmente para o trabalho anônimo e cansativo dos passes. A terapia dos passes é uma tarefa de redenção, onde a pessoa dá de si mesma e depois, quando o paciente se recupera, ignora quem o ajudou.

Ela se despediu, prometendo retornar após mais dez anos.
Acho esse fato de uma beleza comovedora.

*

É impressionante a riqueza desses fatos que Divaldo narra e que, graças à sua mediunidade, tornam-se conhecidos. Um barraco de taipa e palha, uma mulher tuberculosa, um bebê recém-nascido compõem um novo quadro, um novo ato do pungente drama humano, tendo como pano de fundo a dor e a miséria.

Mas a mulher, prestes a abandonar a vida terrena, luta para manter o filho – a vida que se inicia na carne. Morte e vida! O crepúsculo, o dia que finda e o amanhecer de promessas e esperanças, no constante confronto dos contrários. Tese e antítese que se vão fundir na síntese final da Vida que prossegue além da vida.

Mas, alguém vela por essa solidão e entra no barraco como se fosse o próprio sol a dissipar as sombras dos mais tristes presságios que invadiam o coração dolorido da pobre mãe.
– Ele será meu filho – promete. – eu o farei feliz.
Ela ouve a promessa, o compromisso selado à beira de dor, feliz -, aquietando-se-lhe, então, a alma que se despede, de chofre, como se o débil organismo físico a expulsasse, entre as dores de um parto em que a vida triunfa, definitivamente, da morte.

Aparentemente uma história simples e triste. A criança é levada para a sua nova vida. É apenas um bebê, mais um, dos muitos que já passaram pela “Mansão do Caminho”.  Aos 8 meses enferma gravemente. Divaldo, em plena vivência da promessa, aflige-se. É seu filho, que ali está enfermo, com risco de vida.

Em sua aflição ora e intercede por ele. Aplica-lhe passes; preocupa-se. Neste momento tem uma belíssima visita, conforme descreve. Um detalhe que primeiro chama a atenção é que Divaldo vê a entidade através da porta; ela ainda não havia entrado no quarto.

* * *

Em O Livro dos Médiuns, Allan Kardec dedica o Capítulo VI às questões das Manifestações Visuais, e à certa altura diz: O microscópio nos revelou o mundo dos infinitamente pequenos, de cuja existência não suspeitávamos; o Espiritismo, com o auxilio dos médiuns videntes, nos revelou o Mundo dos Espíritos, que por seu lado, também constitui uma das forças ativas da Natureza.

Com o concurso dos médiuns videntes, possível nos foi estudar o mundo invisível, conhecer-lhe os costumes, como um povo de cegos poderia estudar o mundo visível com o auxílio de alguns homens que gozassem da faculdade de ver” (item 103).

Também no Capítulo XIV, referente às categorias de médiuns, o Codificador esclarece quanto aos médiuns videntes: “A faculdade consiste na possibilidade, senão permanente, pelo menos freqüente de ver qualquer Espírito que se apresente, ainda que seja absolutamente estranho ao vidente. A posse dessa faculdade é o que constitui, propriamente falando, o médium vidente.

“Entre esses médiuns, alguns há que só vêem os Espíritos evocados e cujas descrição podem fazer com exatidão minuciosa. Descrevem-lhe, com as menores particularidades, os gestos, a expressão da fisionomia, os traços do semblante as vestes e, até, os sentimentos de que parecem animados. Outros há em quem a faculdade da vidência é ainda mais ampla: vêem toda a população espírita ambiente, a se mover em todos os sentidos, cuidando, poder-se-ia dizer, de seus afazeres. (item 168).

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Pela vidência Divaldo acompanha todo o desenrolar do socorro que a mãe presta ao filho, sendo ele próprio convocado a colaborar com suas energias para a renovação das forças da criança, o que proporciona então uma renovação orgânica contra a infecção. Um outro ponto se destaca: é o desdobramento do Espírito encarnado no corpo infantil. Quando este surge diante do médium está com usa aparência anterior, isto é, de sua última existência.

Isto nos recorda um capítulo de nosso livro Testemunhos de Chico Xavier, editado pela FEB, intitulado “Um sonho que se realizou”, no qual Chico narra, em carta datada 25-11-1948, que em desdobramento encontrara um Espírito cercado em luz, a Sra. Virgínia e um cavalheiro num jardim. Esta era mãe do Dr. Wantuil de Freitas e o cavalheiro ele identificaria, mais tarde, em Zeus Wantuil, àquela época uma criança. Note-se que embora criança, fisicamente falando, Zeus – Espírito apresenta-se como adulto, quando em desdobramento.

A narrativa de Divaldo e Chico Xavier apresentam esta similitude. Antes de qualquer comentário é oportuno meditarmos o quão pouco sabemos a respeito do perispírito.

Sabe-se que, no processo reencarnatório, o perispírito sob o comando do Espírito miniaturiza-se e assume a morfologia que terá daí por diante à qual imprime no corpo em formação. Este processo só se completa quando a criança atinge os 7 anos de idade. Infere-se, portanto, que durante estes sete primeiros anos o Espírito poderia ter, em certos casos, uma autonomia maior, conforme lhe fosse conveniente.

Assim se explica, de maneira lógica, essa plasticidade do perispírito de um Espírito encarnado, que traz consigo, inclusive, muitas lembranças do passado. A programação das reencarnações varia ao infinito e tanto no caso da criança enferma quanto no de Zeus houve permissão – talvez por necessidade e/ ou mérito – dessa autonomia.

Só aos poucos vamos desvendando essas nuanças do processo reencarnatório, das funções do perispírito e, isto, graças à mediunidade e à revelação dos Espíritos. Ressalta ainda deste texto a comovedora dedicação da Entidade que se apresenta como mãe espiritual da criança. A ligação entre ambos, como mãe e filho, vem desde o século XI. Ela explica que ele cometera graves crimes por ocasião da Terceira Cruzada.

* * *

As Cruzadas eram expedições militares de caráter religioso, quando leigos e religiosos se uniram numa tentativa maciça de recuperar a “Terra Santa da Cristandade” em poder dos muçulmanos infiéis.

As Cruzadas aconteceram entre os séculos XI e XIII. Os historiadores costumam estabelecer as seguintes datas para as Cruzadas: 1096 – 1099; Segunda Cruzada 1147 – 1149; Terceira Cruzada, 1189 – 1192; Quarta Cruzada, 1202 – 1204; Cruzada das Crianças, 1212; Quinta Cruzada, 1218 – 1221; Sexta Cruzada, 1228 – 1229; Sétima Cruzada, 1248 – 1264; Oitava Cruzada, 1207 – 1274.

Essas guerras convulsionaram a Europa e o Oriente Próximo durante 178 anos. “Entre as “guerras santas” nenhuma foi mais sangrenta e mais dilatada do que as Cruzadas cristãs, durante a Idade Média. Além da alegação notória que as lançou – tomar os Lugares Santos da Cristandade em Jerusalém -, a Igreja de Roma viu nelas uma oportunidade de alargar para o Oriente os seus domínios, onde imperava a sua grande rival, a Igreja Grega. Os reis e senhores feudais da Europa ocidental viam perspectivas de adquirir novas terras e riquezas e o clero esperava encontrar um escoadouro para os rixentos e desordeiros.

“Os próprios Cruzados obedeciam a impulsos conflitantes. Tomando a cruz, tinham perfeita noção das recompensas prometidas pela Igreja – inclusive a remissão de penitências pelos pecados e moratórias para as suas dívidas. Muitos, porém, mostravam-se dissolutos e brutais. Violavam e saqueavam outros cristãos e cometiam terríveis atrocidades contra os inimigos muçulmanos. Contudo, uma grande força de fé também dirigia os Cruzados, uma profunda reverência pelo solo pisado por Jesus.

“Os Cruzados recuperaram os Lugares Santos, mas só os mantiveram em sua posse menos de cem anos. E tanto nessa obra de conquista como na realização do sonho de estender até o Oriente o poderio do Ocidente, os Cruzados fracassaram, ao final. Ao se encerrarem as Cruzadas, a lei de Maomé dominava as terras onde se haviam travado as batalhas.
O império bizantino dos cristãos orientais estavam sobre si própria. Porém jamais seria a mesma Europa; suas janelas para o mundo tinham-se aberto e todos os aspectos da vida medieval haviam sido afetados”. (Dados extraídos da “Biblioteca de História Universal Live”).

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A Terceira Cruzada aconteceu no século XII, entre 1189 e 1192, e foi por esta época que o Espírito hoje reencarnado no menino adotado por Divaldo, se comprometeu gravemente. A própria mãe esclarece que ele usou o nome do Cristo para se locupletar através do poder que a Igreja lhe conferira.

Como se pode perceber a cada passo dos ensinos dos Espíritos, a cada testemunho vivo apresentam o quanto são gravíssimos os crimes perpetrados em nome do Cristo. São os mais hediondos que o ser humano pode cometer, pois além do crime em si ainda levam o agravante de usarem o nome d’Ele, que para todos nós deveria ser sagrado. Entretanto, em nossa mesquinha pequenez quantas vezes o usurpamos para mascarar nossas tenebrosas intenções?

E hoje, engajados nas hostes espiritistas, o que estamos fazendo do nome d’Ele? Da sua mensagem? Do Consolador que Ele prometeu à Humanidade? O que fazemos do Cristo?


In: SHUBERT, Suely Caldas. O semeador de Estrelas. Salvador: Linvraria Espírita Alvorada Editora, 1993. Pgs 161 – 170. (recomendamos a leitura na íntegra do livro que tráz relatos magníficos de experiências acontecidas na vida de Divaldo Franco).

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