O que foi o “Auto-de-Fé de Barcelona” ?
Auto-de-fé de Barcelona foi uma expressão notabilizada por Allan Kardec para se referir à queima, em praça pública, de trezentos livros espíritas, realizada no dia 9 de outubro de 1861 em Barcelona, Espanha. Foi utilizada pela primeira vez no subtítulo do artigo “O resto da Idade Média”, publicado em novembro daquele ano, na “Revue Spirite”.
Maurice Lachâtre, editor francês, achava-se estabelecido em Barcelona com uma livraria, quando solicitou a Kardec, seu compatriota, em Paris, uma partida de livros espíritas, para vendê-los na Espanha.
Quando os livros chegaram ao país, foram apreendidos na alfândega, por ordem do Bispo de Sevilha, sob a alegação de que “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países”[1]. O mesmo eclesiástico recusou-se a reexportar as obras apreendidas, condenando-as à destruição pelo fogo. Veja nos textos abaixo, o que Kardec escreveu sobre o assunto na Revista Espírita, logo após o evento, nos meses de novembro e dezembro de 1861:
O resto da Idade Média
Auto-de-fé das obras Espíritas em Barcelona.
Não informamos nada, aos nossos leitores, sobre esse fato, que já não saibam pela via da imprensa; o que ocorreu de admirar, foi que os jornais, que passam geralmente por bem informados, hajam podido colocá-lo em dúvida; essa dúvida não nos surpreende; o fato em si mesmo parece tão estranho para o tempo em que vivemos, e está de tal modo longe de nossos costumes que, alguma cegueira que se reconhecesse ao fanatismo, crê-se sonhar ouvindo dizer que as fogueiras da inquisição se acendem ainda em 1861, à porta da França; a dúvida, nessa circunstância, é uma homenagem prestada à civilização européia, ao próprio clero católico.
Em presença de uma realidade incontestável hoje, o que deve mais espantar, é que um jornal sério, que cai cada dia, sem dó nem piedade, sobre os abusos e as usurpações do poder sacerdotal, não haja encontrado, para assinalar esse fato, senão algumas palavras zombeteiras, acrescentando: “Em todo caso, não seremos nós que nos divertiremos, neste momento, em fazer girar as mesas na Espanha.” (Siécle de 14 de outubro de 1861.)
O Siécle está a ver, portanto, o Espiritismo nas mesas girantes? Ele também está, pois, bastante cego pelo ceticismo para ignorar que toda uma doutrina filosófica, eminentemente progressiva, saiu dessas mesas das quais tanto se zombou? Não sabe, pois, ainda, que essa idéia fermenta por toda a parte; que por toda a parte, nas grandes cidades como nas pequenas localidades, do alto a baixo da escala, na França e no estrangeiro, essa idéia se difunde com uma rapidez extraordinária? Que, por toda a parte, as massas proclamam nela a aurora de uma renovação social? O golpe com o qual se acreditou feri-la, não é um indício de sua importância? Porque não se investe assim contra uma infantilidade sem conseqüência, e Don Quixote não retornou na Espanha para se bater contra os moinhos de vento.
O que não é menos exorbitante, e o que contra o qual se espanta, é não se ter visto um protesto enérgico, é a estranha pretensão que se arroga o bispo de Barcelona de fazer a polícia na França. Ao pedido que foi feito de reexportar as obras, respondeu com uma recusa assim motivada: A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países. Assim, eis um bispo estrangeiro, que se institui em juiz do que convém ou não convém à França! A sentença, portanto, foi mantida e executada sem mesmo isentar o destinatário das despesas de alfândega, que se teve muito cuidado em fazê-lo pagar.
Eis a narração que nos foi pessoalmente dirigida: “Este dia, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta e um, às dez horas e meia da manhã, sobre a esplanada da cidade de Barcelona, no lugar onde são executados os criminosos condenados ao último suplício, e por ordem do bispo desta cidade, foram queimados trezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber:
- “A Revista Espírita, diretor Allan Kardec;
- “A Revista Espiritualista, diretor Piérard;
- “O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;
- “O Livro dos Médiuns, pelo mesmo;
- “O que é o Espiritismo, pelo mesmo;
- “Fragmento de sonata, ditado pelo Espírito de Mozart;
- “Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo doutor Grand;
- “A História de Jeanne d’Arc, ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufaux;
- “A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, pelo barão de Guldenstubbé.
“Assistiram ao auto-de-fé:
- “Um padre revestido das roupas sacerdotais, trazendo a cruz numa mão e a tocha na outra mão;
- “Um notário encarregado de redigir a ata do auto-de-fé;
- “O escrevente do notário;
- “Um empregado superior da administração da alfândega;
- “Três moços (serventes) da alfândega, encarregados de manter o fogo;
- “Um agente da alfândega representando o proprietário das obras condenadas pelo bispo.
- “Uma multidão inumerável encobria os passeios e cobria a imensa esplanada onde se elevava a fogueira.
“Quando o fogo consumiu os trezentos volumes ou brochuras Espíritas, o padre e seus ajudantes se retiraram, cobertos pelas vaias e as maldições dos numerosos assistentes que gritavam: Abaixo a inquisição! “Numerosas pessoas, em seguida, se aproximaram da fogueira, e recolheram as suas cinzas.”Uma parte dessas cinzas nos foi enviada; com elas se encontra um fragmento de O Livro dos Espíritos consumido pela metade.
Nós o conservamos preciosamente, como um testemunho autêntico desse ato insensato. Toda opinião à parte, esse assunto levanta uma séria questão de direito internacional. Reconhecemos ao governo espanhol o direito de proibir a entrada, sobre o seu território, das obras que não lhe convém, como a de todas as mercadorias proibidas. Se essas obras tivessem sido introduzidas clandestinamente e em fraude, nada haveria a dizer; mas são expedidas ostensivamente e apresentadas na alfândega; era, pois, uma permissão legalmente solicitada.
Esta acreditou dever referi-la à autoridade episcopal que, sem outraforma de processo, condena as obras a serem queimadas pela mão do carrasco. O destinatário pediu, então, para reexportá-las para o lugar de origem, e lhe foi respondido pelo fim de não receber, relatado acima. Perguntamos se a destruição dessa propriedade, em tais circunstâncias, não é um ato arbitrário e fora do direito comum. Examinando-se este assunto do ponto de vista de suas conseqüências, diremos primeiro que não houve senão uma voz para dizer que nada podia ser mais feliz para o Espiritismo. A
perseguição sempre foi aproveitável à idéia que se quis proscrever; por aí se lhe exalta a importância, se lhe desperta a atenção, e fazendo-o conhecer por aqueles que o ignoram. Graças a esse zelo imprudente, todo o mundo, em Espanha, vai ouvir falar do Espiritismo e quererá saber o que é; é tudo o que desejamos. Podem-se queimar os livros, mas não se queimam as idéias; as chamas das fogueiras as super-excitam em lugar de abafá-las. As idéias, aliás, estão no ar, e não há Pirineos bastante altos para detê-las; e quando uma idéia é grande e generosa, ela encontra milhares de peitos prontos para aspirá-la. O que se lhe haja feito, o Espiritismo já tem numerosas e profundas raízes na Espanha; as cinzas da fogueira vão fazê-las frutificar.
Mas não será só na Espanha que esse resultado será produzido, é o mundo inteiro que lhe sentirá o contragolpe. Vários jornais da Espanha estigmatizaram esse ato retrógrado, como o merece. Lás Novedades de Madrid, de 19 de outubro, entre outros, contém, sobre esse assunto, um notável artigo; nós o reproduziremos em nosso próximo número. Espíritas de todos os países! Não vos esqueçais desta data de 9 de outubro de 1861; ela será marcada, nos fastos do Espiritismo; que ela seja para vós um dia de festa e não de luto, porque é a garantia do vosso próximo triunfo! Entre as numerosas comunicações que os Espíritos ditaram sobre esse acontecimento, não citaremos senão as duas seguintes, que foram dadas espontaneamente na Sociedade de Paris; elas dele resumem todas as causas e todas as conseqüências. Sobre o auto-de-fé de Barcelona. “
O amor da verdade deve sempre se fazer ouvir: ela dissipa a névoa, e por toda a parte brilha ao mesmo tempo. O Espiritismo chegou para ser conhecido por todos; logo será julgado e colocado em prática; quanto mais houver perseguições, mais depressa esta sublime Doutrina chegará ao seu apogeu; seus mais cruéis inimigos, os inimigos do Cristo e do progresso, com isso se surpreendem de maneira que ninguém ignore que Deus permite àqueles que deixaram esta Terra de exílio de retornar para aqueles que amaram. Tranqüilizai-vos; as fogueiras se extinguirão por si mesmas, e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive.”
DOLLET.
Nota. Este Espírito, que se manifestou espontaneamente, disse ser o de um antigo livreiro do século dezesseis.
Outra.
Era preciso alguma coisa que ferisse, com um golpe violento, certos Espíritos encarnados para que se decidissem ocupar-se desta grande Doutrina que deve regenerar o mundo. Nada é inutilmente feito sobre a vossa Terra, para isso, e nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos bem que, assim agindo, faríamos dar um passo imenso para a frente. Esse fato brutal, inaudito nos tempos atuais, foi consumado para atrair a atenção dos jornalistas que permaneciam indiferentes diante da agitação profunda que abalava as cidades e os centros Espíritas; deixavam dizer e deixavam fazer; mas se obstinavam em fazer ouvido de mercador, e respondiam pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Por bem ou por mal, é preciso que dele falem hoje; uns constatando o histórico do fato de Barcelona, os outros desmentindo-o, deram lugar a uma polêmica que dará volta ao mundo, e da qual só o Espiritismo aproveitará. Eis por que, hoje, a retaguarda da inquisição fez seu último auto-de-fé, porque assim o quisemos.”
SAINT DOMINIQUE.
Revista Espírita, novembro de 1861
Auto-de-fé de Barcelona
Os jornais espanhóis não foram tão moderados em reflexões, sobre esse acontecimento, quanto os jornais franceses. Qualquer que seja a opinião que se professe com respeito às idéias espíritas, há, no próprio fato, alguma coisa de tão estranha para o tempo em que vivemos, que ele excita mais piedade do que cólera contra as pessoas que parecem ter dormido há vários séculos, e despertado sem ter consciência do caminho que a Humanidade percorreu, crendo-se, ainda, no ponto de partida.
Eis um extrato do artigo publicado, a esse respeito, por Las Novedades, um dos grandes jornais de Madrid: “O auto-de-fé celebrou há alguns meses em Ia Corogne, onde se queimou um grande número de livros à porta de uma igreja, produzira em nosso espírito, e no de todos os homens de idéias liberais, tristíssimas impressão.
Mas foi com uma indignação muito maior ainda que foi recebida, em toda a Espanha, a novidade do segundo auto-de-fé celebrado em Barcelona, nessa bela capital civilizada da Catalunha, em meio de uma população essencialmente liberal, à qual, sem dúvida, se fez esse insulto bárbaro, porque se reconhece nela grandes qualidades.”
Depois de dar conta dos fatos segundo o jornal de Barcelona, acrescenta: “Eis o repugnante espetáculo que os homens da união liberal autorizaram, em pleno século XIX: uma fogueira em Ia Corogne, uma outra em Barcelona, e muitas outras ainda que não faltarão em outros lugares. Foi o que deveria acontecer, porque é uma conseqüência imediata do espírito geral que domina o estado de coisas atual, e que se reflete em todas as coisas.
Reação interna relativamente aos projetos de lei que se apresenta; reação externa apoiando todos os governos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda, combatendo as idéias liberais em todas as ocasiões, procurando o apoio da reação de todos os lados, e obtendo-o ao preço de mais inábeis concessões.” Seguem longas considerações relativamente aos sintomas e às conseqüências desse ato, mas que, pelo seu caráter essencialmente político, não são da alçada de nosso jornal.
O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi o primeiro que anunciou o auto-de-fé, dizendo que “Os títulos dos livros queimados bastavam para justificar a sua condenação; que é o direito e o dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quando se dá mais liberdade à imprensa, principalmente nos países que jouissent (gozam) da terrível praga da liberdade dos cultos”. La Carona, Jornal de Barcelona, fez, a esse respeito, as reflexões seguintes: “Esperávamos que nosso colega (le Diaro), que dera a notícia, teria a bondade de satisfazer acuriosidade do público sério, alarmado com semelhante ato, incrível no tempo em que vivemos; mas foi em vão que esperamos as suas explicações. Desde então, fomos assaltados por perguntas sobre esse acontecimento, e nos manda a verdade dizer que os amigos do governo com ele sentem mais dificuldades do que aqueles que lhe fazem oposição.
“No objetivo de satisfazer a curiosidade tão vivamente excitada, procuramos a verdade, e temos o pesar de dizer que o fato é exato, e que, com efeito, o auto-de-fé foi celebrado nas circunstâncias seguintes:
(Continuação da narração que demos em nosso último número.)
“Os expedientes empregados para chegar a esse resultado não podem ser mais expeditos nem mais eficazes. Apresentam-se ao controle da alfândega os livros supracitados; respondese ao caixeiro que não se poderia expedir sem uma autorização do senhor bispo. O senhor bispo estava ausente; em seu retorno, se lhe apresentou um exemplar de cada obra, e, depois detê-los lido, ou fazê-los ler por pessoas de sua confiança, conformando-se ao julgamento de sua consciência, ordenou que fossem lançados ao fogo como sendo imorais e contrários à fé católica.
Reclamou-se contra uma tal sentença, pediu-se ao governo que, uma vez que não permitia a circulação desses livros na Espanha, se permitisse ao menos, ao seu proprietário, reexpedi-los para o seu lugar de origem; mas isso mesmo foi recusado, dando por razão que sendo contra a moral e a fé católica, o governo não podia consentir que esses livros fossem perverter a moral e a religião de outros países. Apesar disso, o proprietário foi obrigado a pagar os direitos, que parece não deveriam ser exigidos. Uma multidão imensa assistiu ao auto-de-fé, o que não tem nada para admirar, tendo-se em conta a hora e o lugar da execução, e sobretudo a novidade do espetáculo.
O efeito que produziu sobre os assistentes foi a estupefação em uns, o riso em outros, e a indignação entre a maioria, à medida que se dava conta do que se passava. Palavras de ódio saíam de mais de uma boca, depois vieram os gracejos, os ditos bufos e mordazes da parte daqueles que vêem, com um extremo prazer, a cegueira de certos homens; e isso tem sua razão, porque se entrevêem, nessa reação, digna do tempo da inquisição, o triunfo mais rápido de suas idéias; escarneciam-se a fim de que essa cerimônia não aumentasse o prestígio da autoridade que, com tanta complacência, se presta a exigências verdadeiramente ridículas.
Quando as cinzas dessa nova fogueira foram resfriadas, notou-se que pessoas que estavam presentes, ou que passavam por perto, sabedoras do fato, se dirigiam para o lugar do auto-de-fé, e recolhiam uma parte das cinzas para conservá-las. “Tal é o relato desse acontecimento, do qual não se pode impedir de falarem as pessoas que aí se encontram; indigna-se, lamenta-se ou se rejubila, segundo a maneira de interpretar as coisas. Os sinceros partidários da paz, do princípio de autoridade e da religião, se afligem com essas demonstrações reacionárias, porque compreendem que, às reações, sucedem as revoluções, e sabem que aqueles que semeiam ventos não podem colher senão tempestades.
Os liberais sinceros se indignam que semelhantes espetáculos sejam dados ao mundo por homens que não compreendem a religião sem intolerância, e querem impô-la como Maomé impôs o seu Alcorão. “Agora, abstração feita da qualificação dada aos livros queimados, examinaremos o fato em si mesmo. A jurisprudência pode admitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelação e possa impedir a publicação e a circulação de um livro? Dir-se-nos-á que a lei sobre a imprensa assinala o que se deve fazer nesse caso; mas essa lei diz que os livros, tão maus e perniciosos que sejam, serão lançados ao fogo com esse preparativo? Nela não encontramos nenhum artigo que possa justificar semelhante ato.
Além disso, os livros em questão foram publicamente declarados. Um comissário declara os livros à alfândega, porque poderiam estar na categoria daqueles que o artigo 6 assinala; passam à censura diocesana, o governo poderia proibir-lhe a circulação, e a coisa estava terminada. Os padres deveriam se limitar a aconselhar aos seus fiéis de se absterem de tal ou tal leitura, se a julgassem contrária à moral e à religião; mas não se deveria lhes conceder um poder absoluto que os torna juizes e carrascos.
Abstemo-nos de emitir qualquer opinião sobre o valor das obras queimadas; o que vemos é o fato, são suas tendências, e o espírito que ele revela. Em qual diocese se absterá, doravante, de usar, senão de abusar, de uma faculdade que, segundo o nosso julgamento, o próprio governo não tem, se, em Barcelona, na liberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz; ensaia e pode dar um golpe de autoridade em qualquer parte; se triunfa, ousa mais. Esperamos, no entanto, que os esforços do absolutismo serão inúteis, que todas as concessões que lhe fizeram não terão outro resultado senão revelar o partido que, renovando as cenas como as de quinta-feira última, se precipita, cada vez mais, no abismo para onde corre cegamente; é o que nos faz esperar o efeito produzido em Barcelona por esse auto-de-fé.